Rodas Culturais transformam vidas no Rio de Janeiro
- Rampas

- 15 de out.
- 7 min de leitura
Entre repressão e conquistas, eventos se transformam em espaço fundamental para oferta de lazer e cultura
Por Carolina Coutinho e Daniel Guedes
Toda quarta-feira, jovens de diversas regiões do Rio de Janeiro saem de casa rumo a um dos pontos mais tradicionais da cultura hip-hop carioca: a Roda Cultural do Méier. Em um pequeno bar em frente à Mini Ramp, praça próxima ao Viaduto Castro Alves, Luiz Felipe da Silva, de 18 anos, morador do bairro da Penha, sobe no palco e desabafa, em rimas, sobre os problemas cotidianos, como a pressão da família que reprova sua carreira como MC. “Eu não posso parar. Eu sobrevivi às lutas que eram pra eu fracassar. Desde menorzinho, um moleque sonhador, com fome de vitória e sede de vencedor.”
Com versos assim, Luiz vislumbra um futuro melhor. Quando sobe ao palco, o menino tristonho e tímido da Penha se transforma no MC LF, mostrando sua versão mais confiante ao apresentar sua música para o público.
Assim como Luiz, centenas de jovens encontram no break, graffiti e rap — elementos da cultura hip-hop — um ponto de apoio para fugir da rotina sufocante. Nas rodas culturais, esses jovens conseguem um momento de felicidade, palavra pouco falada no dia a dia caótico e conturbado dos cariocas.
As rodas culturais surgiram no Rio de Janeiro por volta de 2009, após o incêndio no Centro Interativo de Circo (CIC), que ficava localizado nas instalações da Fundição Progresso. O CIC era um ponto tradicional dos movimentos de hip-hop carioca. Começou então um movimento capitaneado pelo Circuito Carioca de Ritmo e Poesia (CCRP), que foi agrupando diversas rodas culturais realizadas na cidade – as pioneiras surgiram em Bangu, São Cristóvão, Lapa, Botafogo, Copacabana e Cantareira. A elas foram se juntando outras, como as da KGL (Catete, Glória e Lapa); a Pac’stão, em Manguinhos; as rodas do Méier e da Vila Isabel. Com o passar do tempo, o CCRP se estabilizou como importante defensor da cultura e em 2012 foi reconhecido pela Prefeitura do Rio de Janeiro por meio do decreto Nº 36.201, que valoriza oficialmente a iniciativa.
Para quem não sabe, há diferenças entre as rodas culturais e as batalhas de rima. As rodas são eventos nos quais acontecem saraus de poesia, apresentações de artistas e grupos independentes em ritmos variados, troca de livros e batalhas de rima. Essas, por sua vez, são disputas que os artistas se apresentam e cantam ou declamam versos de sua autoria sobre temas de seu cotidiano. As batalhas, presentes no Brasil desde os anos 1990, são um dos pilares fundamentais da cultura hip hop.
De acordo com o Censo de 2022, realizado pelo IBGE, o número de favelas na cidade do Rio de Janeiro cresceu 40%: eram 763 comunidades em 2010, enquanto em 2022 foram contabilizadas no mínimo 1074 favelas na cidade. Esse crescimento populacional em áreas populares aumentou a demanda por acesso à cultura para essa população, e o hip-hop se fortaleceu essas regiões. Em julho de 2016, segundo dados da pesquisa “Arte de rua e resistência”, da Universidade Federal Fluminense (UFF), havia aproximadamente 120 rodas culturais ativas em todo o estado do Rio de Janeiro, sendo mais de 50 na capital.
Algumas rodas surgiram justamente em resposta à falta de ofertas culturais. Por exemplo, o fechamento da Biblioteca Parque Manguinhos, no início de 2017, por falta de financiamento público, fez surgir a Roda do Pac’stão. Criada como forma de resistência, ela passou a acontecer às segundas-feiras, no local onde funcionava a biblioteca.
Em 2017, a Lei Nº 186/2017, aprovada pela Câmara de Vereadores, declarou as rodas do Circuito Carioca de Ritmo e Poesia como Patrimônio Cultural Carioca. Além disso, houve a aprovação da Lei Nº 7.837/2018, que declara a cultura hip-hop e suas manifestações (breaking, graffiti, rap, MC e DJ) como Patrimônio Cultural Imaterial do Estado do Rio de Janeiro.
Pesquisa Arte de Rua e Resistência, coordenada pela professora Rôssi Alves

Dificuldades para realização
Em paralelo à popularização das batalhas de rima, a violência e a insegurança da população também aumentaram. As rodas, em grande parte localizadas em áreas marginalizadas, também são prejudicadas.
Paralisada desde o dia 11 de maio, a Roda Cultural de Vila Isabel é um exemplo de como a violência interfere na realização dos eventos. A roda acontece na Praça Barão de Drummond, no Boulevard 28 de Setembro, perto do Morro dos Macacos - hoje cenário da guerra entre facções.
A situação de risco forçou os organizadores a suspenderem os encontros da roda por tempo indeterminado. “Já aconteceu de passarem atirando na praça em pleno domingo cheio de famílias. Queremos fazer o evento, mas não queremos morrer”, relata Tiago Ripper, fotógrafo da Roda Cultural de Vila Isabel. Ele se refere aos acontecimentos de agosto de 2024, quando homens em carros e motos deixaram cinco mortos ao dispararem tiros contra a praça.

Os organizadores se veem de mãos atadas frente à violência. “O que nós podemos fazer é esperar. A maioria de nós é de Vila Isabel, vários são do Morro dos Macacos. Temos que esperar as coisas se acalmarem, deixar baixar a tensão para tentar voltar”, acrescenta Tiago.
Jovens negros, se são os principais frequentadores das rodas culturais, são também as principais vítimas da violência urbana. Segundo dados do Atlas da Violência de 2023, levantamento realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em todo o país houve 35.295 pessoas negras vítimas de homicídio, enquanto entre pessoas não-negras o número foi de 9.908 vítimas. Entre 2013 e 2023, o número de pessoas não negras vítimas de homicídio foi de 137.440 pessoas, enquanto entre pessoas negras o número foi de 441.900 vítimas da violência, mais do que o triplo.
A pesquisa mostra que, de 2013 a 2023, as vítimas de homicídio na cidade do Rio de Janeiro somaram 55.500 pessoas. No mesmo período, foram 312.713 vítimas de violência no Brasil entre 15 e 29 anos.
A falta de apoio financeiro é outro problema constante para garantir a realização das rodas culturais. “Aqui, todo mundo trabalha por amor ao rap, porque não tem como viver apenas do dinheiro que vez ou outra a gente consegue com a roda. Eu mesmo vivo de freelance, às vezes até produzindo imagens para MCs, mas tudo que a gente ganha com a roda gastamos em melhoria dos equipamentos, conserto de caixa de som e tudo mais que for preciso”, conta Tiago.
A Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura (PNAB) — criada para apoiar o setor cultural com recursos destinados a trabalhadores e espaços artísticos, além de incentivar atividades por meio de prêmios e editais até 2027 — representou um avanço diante da falta de financiamento recorrente. Dentro dela, o hip-hop está incluído na categoria “Cultura Urbana”, possibilitando a criação de projetos específicos de fomento.
Um exemplo de projeto é o programa “Pró-Carioca Linguagens”, lançado em dezembro de 2023. Nele, a Secretaria Municipal de Cultura abre editais para que iniciativas culturais se inscrevam e, após avaliação, recebam parte da verba destinada a cada categoria.
Apesar do avanço, ainda há distribuição desigual dos recursos. Na categoria “Cultura Urbana e Arte Pública”, que engloba os projetos ligados ao hip-hop, apenas 12 foram contemplados, dividindo um total de R$1,5 milhão. Já áreas associadas à arte erudita recebem incentivos bem maiores. A categoria “Teatro”, por exemplo, teve 31 projetos selecionados e um valor destinado de R$6 milhões. O Rampas procurou a Secretaria Municipal de Cultura para compreender melhor os critérios de seleção, mas não houve resposta.
Impacto
Apesar dos obstáculos, as rodas culturais seguem mudando a vida de inúmeros artistas. Segundo Allan Santos, conhecido como Allan “Marola”, fundador e organizador da Roda do Méier, o propósito de qualquer roda — além da promoção de cultura e entretenimento gratuito — é dar oportunidades e visibilidade para pequenos artistas. A íntegra do evento é gravada e publicada no canal do YouTube, servindo como portfólio artístico para aqueles que não podem arcar com os custos de uma produção profissional.
Embora pareça um sonho distante, atingir o sucesso a partir de apresentações em rodas e batalhas não é tão raro quanto parece. Grandes nomes do rap nacional encontraram nas rodas os seus primeiros palcos: “O primeiro show da vida do BK’ foi aqui na Roda Cultural do Méier. O primeiro show do Filipe Ret também foi aqui”, relembra Allan. Ambos os rappers somam hoje bilhões de reproduções com suas músicas.
Esse também foi o caso do MD Chefe, rapper cujo os últimos lançamentos passam de 100 milhões de reproduções, que também era presença frequente nas rodas quando ainda batalhava. “Lembro de ver ele ali, na época ainda era o ‘Madruguinha’ (antigo nome artístico), buscando o espaço dele. Sempre com o mesmo estilo, aquele ‘jeitão’ que faz parte do personagem também, mas sempre muito humilde e respeitoso”, recorda Tiago Ripper.
Vídeo por: Carolina Coutinho
Rapper amador faz sua primeira apresentação, na sessão open mic da Roda do Méier em 07/05/2025, e surpreende o público com flow e qualidade das rimas
Em 2024, para comemorar o 12º aniversário da Roda do Méier, a praça recebeu diversos artistas consagrados, como Sain — rapper, produtor e filho do Marcelo D2 —, que também participou de rodas de rima no início da carreira. Na Roda da Vila, também já se apresentaram Filipe Ret, Sain e MC Marechal.
A iniciativa de trazer artistas renomados para as rodas proporciona uma oportunidade de acesso à cultura e lazer para os moradores do bairro. Muitos não conseguem frequentar os shows em outros lugares, por causa dos preços altos dos ingressos.
As rodas também representam um espaço acolhedor para diversos grupos socialmente marginalizados. DJ Inads, artista e mulher transexual, quando perguntada sobre vivências especiais como artista, elogiou a Roda do Méier pelo fato de ter sido bem recebida e apreciada, tanto pela organização quanto pelo público.
Foto e vídeo por: Carolina Coutinho

Reconhecimento e avanços
A relação entre as rodas e a administração pública nem sempre foi positiva. Segundo dados da pesquisa da comunicadora social Valentina Weihmüller, que estudou o movimento do Hip-Hop na favela de Manguinhos na sua tese de mestrado em Educação em Ciências e Saúde na UFRJ, entre os anos de 2014 e 2017 houve 12 casos de repressão de diferentes rodas pelos órgãos governamentais registrados nas redes sociais. Apesar das dificuldades, as rodas culturais seguem seu ritmo. Giram contra o preconceito e a estigmatização, se transformando em espaços de socialização e cultura na periferia da cidade.
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