Sem sombra, sem alívio: calor transforma favelas cariocas em fornos
- Rampas
- 1 de out.
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Ilhas de calor acentuam desigualdades sociais, e moradores das Zonas Norte e Oeste são os que mais sofrem com as altas temperaturas
Por João Pedro Serafim Alves e João Otávio Alves

Imagine viver em um bairro onde a temperatura chega a 40 °C. A cada janeiro, os lençóis saem da cama e vão ao chão, virando colchonetes improvisados. O ventilador gira rente aos pés, os banhos frios se multiplicam, e pela manhã o suor é o despertador. No trajeto até a praia, em busca de refresco, a roupa já está encharcada muito antes da chegada à estação de trem. O alívio do ar-condicionado dura pouco: ao embarcar no ônibus seguinte, o calor sufocante retorna. O destino - a praia - faz a jornada valer a pena, mas o ciclo do calorão recomeça no dia seguinte.
Essa é a rotina de milhares de moradores das favelas cariocas, especialmente nas zonas Norte e Oeste, onde as ilhas de calor transformam comunidades em fornos urbanos. Ilhas de calor são áreas urbanas com temperaturas mais altas do que a média da região. O aumento da temperatura é resultado da absorção de calor por superfícies de asfalto e concreto, além da ausência de vegetação.
Em 19 de janeiro de 2025, dados coletados pela Prefeitura do Rio registraram diferença de até 7,6°C no mesmo dia: os termômetros chegaram a 41,5°C em Irajá, na Zona Norte, enquanto o Jardim Botânico, na Zona Sul, marcou 34,3°C. Os horários mais críticos ficam entre 12h e 14h, quando o risco à saúde é maior. “O calor extremo causa desidratação, tonturas e dores de cabeça, especialmente em crianças, idosos e pessoas com doenças respiratórias. Também aumenta a irritação, a ansiedade e a insônia”, alerta Nikolas Zanette, professor de Geografia do Colégio Mopi.
Nas favelas cariocas, as construções são mais próximas, muitas vezes coladas umas às outras, e há menos áreas verdes. O uso de materiais como concreto e telhas de zinco criam um “efeito estufa” dentro das casas, aumentando ainda mais o calor. Nas ruas, a pavimentação reflete os raios solares; as vias costumam ser estreitas, com má circulação de ar, e muitos transportes passam emitindo ainda mais população. Tudo isso tem impacto direto na saúde e no bem-estar de quem vive nas comunidades.
Regiões como Jacarezinho, Cidade de Deus e Maré têm apenas x metros quadrados de áreas verdes por habitante, muito abaixo da média municipal, onde há 97,7m² de área verde por habitante, segundo levantamento publicado pelo Instituto Pereira Passos (IPP) com base em dados de 2014. Imagens de satélite com os resultados do Índice de Vegetação por Diferença Normalizada (NDVI) confirmam a escassez do verde nas áreas densamente urbanizadas.
Dados mais recentes, como o Censo de 2022 do IBGE, apontam que apenas 62,2% dos moradores da região metropolitana do Rio vivem em ruas com arborização. Outro estudo da SBAU, de 2023, revelou ainda que o município tem um déficit de aproximadamente 1 milhão de árvores, afetando principalmente as Zonas Norte e Oeste.
O Rio de Janeiro é dividido em cinco Áreas de Planejamento (APs). A AP 1 abrange o Centro, a AP 2 a Zona Sul e Grande Tijuca, e a AP 4, Barra da Tijuca e Jacarepaguá. Mas é na AP 3 (Zona Norte) e na AP 5 (Zona Oeste) que se concentram os bairros mais quentes. A AP 3, que inclui Ramos, Maré e Jacarezinho, tem apenas apenas 14,8 metros quadrados de arborização por habitante. A AP 5, que engloba Bangu, Campo Grande e Santa Cruz, sofre picos térmicos mesmo próxima a áreas de vegetação densa, como o Parque Estadual da Pedra Branca — isolado e desconectado dos espaços urbanos.
“Moradores dessas áreas têm produtividade reduzida e aumento no custo de vida, com maior consumo de energia. O calor ainda favorece a propagação de doenças e o desperdício de alimentos,” observa Zanette.


Dados do satélite Landsat colhidos de 1984 a 2020 mostram que seis dos dez bairros mais quentes da cidade, como Ramos e Bonsucesso, estão na AP 3. Isso consolida a Zona Norte como o “caldeirão” do Rio. O estudante de Jornalismo da Uerj Júlio César Fernandes, morador de Bonsucesso, descreve sua rotina na maior parte do ano: “O corpo cola no sofá e encharca a cama com suor. Tomo vários banhos por dia. Não há árvores nas calçadas, nem perto dos comércios.” Para se refrescar, moradores recorrem ao Piscinão de Ramos. Júlio diz que sente a diferença ao atravessar para a Zona Sul: “O ar muda. Respiramos diferente.”
Enquanto isso, no Jardim Botânico, um dos bairros mais arborizados do Rio, a temperatura é amenizada pela vegetação densa. “Aqui é fresco e úmido. Quando faz calor, vamos à praia ou pegamos uma piscina”, relata André Macedo, estudante de Cinema da PUC e morador da região.
Moradora da Vila da Penha, na Zona Oeste, a estudante de jornalismo Laiza Villaça diz que estar em seu bairro nos dias mais quentes é “infernal”. O mormaço dificulta a respiração, o cansaço se multiplica e até com dois ventiladores é difícil dormir. Ela já precisou recorrer a panos umedecidos em água gelada para aliviar o corpo. “Nos últimos dias de verão, as fornecedoras cortaram água e energia elétrica à noite. Ficamos sem poder ligar ventilador, tomar banho ou beber água para refrescar.”
O estudo ou trabalho em casa tornam-se insuportáveis. “O trem e a universidade são os únicos lugares com ar-condicionado,” conta Laiza. A única rua arborizada de sua comunidade fica à beira da linha do trem, insuficiente para reduzir o calor. “É loucura pensar que, para respirar melhor, preciso pegar o trem por uma hora e visitar espaços da Zona Sul,” reflete.
Apesar das diferenças geográficas, as Áreas de Planejamento 3 (Zona Norte) e 5 (Zona Oeste) compartilham características: são densamente povoadas, onde a urbanização se deu sem planejamento, segundo dados da Prefeitura do Rio de Janeiro. A cobertura vegetal é escassa, e o investimento público, historicamente menor. Nessas regiões, de população majoritariamente negra e pobre, a desigualdade revela o racismo ambiental: são essas populações as mais expostas às mudanças climáticas e às ilhas de calor. O calor deixa de ser apenas um dado meteorológico para se tornar um marcador social.
Um estudo realizado em 2025 pela Prefeitura do Rio em parceria com a Fiocruz examinou 466 mil mortes naturais registradas entre 2012 e 2024, além de mais de 390 mil mortes associadas a 17 causas específicas. O levantamento mostrou que a exposição a temperaturas acima de 40°C por quatro horas aumenta em 50% a mortalidade de idosos e doentes crônicos. Reportagem do Diário do Rio publicada em abril de 2025 registrou casos de ansiedade, insônia e estresse em moradores de favelas devido ao calor intenso e à falta de ventilação adequada. O relato de Laiza exemplifica bem essa realidade.
O aumento do consumo de energia pressiona o sistema. Com a bandeira vermelha, a conta de luz encarece, enquanto termelétricas são acionadas, aumentando ainda mais a poluição. O ciclo se retroalimenta.
“O único lugar confortável que tenho para andar em dias de calor é essa rua com árvores. Quando você não tem como fugir do calor com bens materiais como ventiladores e ar-condicionados, acho que seria um direito básico ter mais arborização no seu bairro para amenizar a temperatura,” acrescenta Laiza.
O Parque Susana Naspolini, em Realengo, na Zona Oeste, mostra o impacto que áreas verdes podem ter. O caminho até o local é quente, mas a partir da entrada o clima se torna mais fresco e agradável. O espaço exemplifica a eficácia da arborização — desde que seja bem direcionada. Os projetos de restauração urbana, como Refloresta Rio, focado na recuperação de áreas degradadas e no plantio de espécies da Mata Atlântica, o Cada Favela, uma Floresta, que visa restaurar áreas em comunidades e prevenir ocupações de risco e o Ilhas de Frescor, que cria microclimas mais frescos em áreas urbanas são fundamentais para enfrentar os desafios climáticos e urbanos. Telhados verdes, pinturas claras, jardins verticais, sombreamento de praças e pontos de ônibus, além do acesso à água potável e à instalação de bebedouros e nebulizadores, são medidas urgentes.
“A política pública deve contar com a participação dos moradores, por serem os mais afetados. Eles precisam guiar essas iniciativas para que as soluções atendam às necessidades reais,” ressalta Zanette, que também destaca a necessidade de investimento em saúde pública e campanhas educativas.
Atualmente, projetos buscam reduzir as ilhas de calor nas comunidades cariocas. Em 20 de maio de 2025, o prefeito Eduardo Paes sancionou a Lei nº 8.900/2025, que institui o programa Verde Oeste Raiz, voltado à arborização urbana em bairros da Zona Oeste. A iniciativa, proposta pelo vereador Zico (PSD), contempla pelo menos 23 bairros, incluindo Bangu, Realengo, Campo Grande, Santa Cruz, Guaratiba, Paciência e Vila Kennedy. A proposta é transformar o cenário urbano com o plantio de árvores e criação de novas áreas verdes.
Na Maré, a ONG Redes da Maré publica regularmente estudos sobre ilhas de calor e qualidade do ar. Além de desenvolver projetos como o Maré Verde, que promove educação ambiental e mobilização social por meio de atividades como plantio de mudas e articulação com moradores locais para combater desigualdades socioambientais, e o canal de comunicação como o Maré Notícias que promove a campanhas educativas e reportagens sobre o impacto do racismo ambiental nas comunidades.
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