top of page

Tiros, medo e escolas fechadas: quando a violência prejudica o direito de estudar

  • Foto do escritor: Larissa Moura
    Larissa Moura
  • há 3 dias
  • 5 min de leitura

Atualizado: há 1 dia

Alunos e professores contam como a violência armada afeta a educação e a saúde mental


O helicóptero da Polícia Militar rasga o céu cinzento do Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo. Na rua, gritos abafados se misturam ao estalo seco dos tiros. Dentro de casa, a estudante de Museologia da Unirio Stefani Metello, 23, fecha os olhos. O barulho já não assusta, mas continua limitando seu direito de estudar. “Já perdi muitas aulas por causa dessa situação que não é vista e nem tratada. Não temos amparo algum.” 

A cena se repete em outras favelas do Rio de Janeiro. Na Maré, Flávia Cândido, professora e mãe de Guilherme, 23 anos, Celso, 21 anos  e Artur, 17 anos, recorda os anos de estudo dos filhos, marcados por ausências forçadas às aulas. “Em 2015, o Celso perdeu 32 dias de aula. Em 2022, o Artur perdeu 42. Quando tem operação, não tem escola. E quando tem escola, não tem segurança. O Estado impede tudo: educação, saúde, o direito de viver.”

Segundo dados da Secretaria Municipal de Educação, entre o início do ano letivo de 2024 e o mesmo período de 2025, cresceu o número de dias em que escolas foram impactadas por operações policiais. Em 2023, entre 5 de fevereiro e 31 de março, houve 9 dias de impacto em escolas devido a operações policiais. No mesmo período de 2024, esse número subiu para 14 dias.

Flávia conta que o filho mais novo, Artur — o único que ainda está na escola — chegou a ser reprovado devido às faltas. “Meu filho perde aula tanto aqui, se estudasse na Maré, quanto na escola que frequenta, localizada próxima à Serrinha, no pé do Morro do São José, em Madureira. Já tentei conversar com o diretor, com o coordenador, mas não deu certo. Ele reprovou. Acionei o Conselho Tutelar para tentar resolver a situação das faltas.”

Segundo a 7ª edição do Boletim Direito à Segurança Pública na Maré, mostra que essa não é uma exceção.O monitoramento aponta que 62% das operações policiais aconteceram próximo a escolas e creches. Entre 2017 e 2021, a ONG Fogo Cruzado apontou que, em média, uma escola fechava por dia na cidade do Rio devido às operações policiais.

Raphael Lisboa, 22, estudante de jornalismo da Uerj, relembra seus tempos de escola na favela do Jacarezinho e como e como era afetado pela violência. “No ensino fundamental, estudava em escola particular, onde havia mais cuidado com a segurança. No ensino médio, na escola pública, era diferente. Se tivesse tiroteio perto, liberavam a gente no meio da rua, sem qualquer segurança.”

De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010, apenas 1,6% dos moradores de favelas possuíam diploma de ensino superior, enquanto nas demais áreas urbanas essa proporção era de 14,7%. Além disso, um estudo da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro revelou que, enquanto os habitantes das áreas formais da cidade tinham, em média, 7,5 anos de estudo, os moradores de favelas apresentavam uma média de apenas 4,3 anos de estudo. Esses dados evidenciam as significativas desigualdades educacionais enfrentadas por jovens em áreas de maior vulnerabilidade social.

Saúde mental em colapso

Hoje aluna da UniRio, Stefani Metello recorda as manhãs em que se preparava para a escola enquanto o helicóptero da Polícia sobrevoava sua casa. “Acordar com a janela tremendo, com um tiro parecendo que foi dentro do quintal…Isso mexe com psicológico da gente. E ainda temos que provar que isso está acontecendo, porque muitos professores nem acreditam que perdemos aula por causa da violência.”


A violência não impacta apenas o aprendizado, mas também a saúde mental de milhares de crianças e adolescentes. Uma pesquisa da Fiocruz indicou que 70% das crianças que vivem em territórios afetados por conflitos demonstram sintomas de transtorno de estresse pós-traumático.


Flávia Cândido, da Maré, diz que os filhos sofrem com o entorno violento. “Muitas vezes, elas ficam presas na escola durante as operações. A insegurança toma conta, e o desejo de estudar desaparece. O emocional dessas crianças não é igual ao de outras. ”

A educadora do projeto Tecendo Diálogos Emmanuelle Torres, pesquisadora sobre favelas, reflete sobre como a violência foi sendo naturalizada no cotidiano das comunidades. “Nós já sabemos que, no fim do ano, teremos um número absurdo de aulas perdidas. Isso reflete no futuro: muitos estudantes não conseguem acompanhar o conteúdo, desistem da escola e têm menos acesso à universidade.”

A resposta do Estado

A questão da segurança pública e da educação nas comunidades tem motivado audiências públicas e discussões políticas. Durante a pandemia, com o aumento das operações policiais e das mortes em favelas, diversas entidades ingressaram com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 635, conhecida como "ADPF das Favelas", solicitando restrições às operações policiais em comunidades, especialmente durante o horário escolar. 

No dia 3 de abril de 2025, o Supremo Tribunal Federal (STF) homologou parcialmente o plano apresentado pelo Estado do Rio de Janeiro para reduzir a letalidade policial. Entre as medidas estabelecidas, o STF determinou que operações próximas a escolas e hospitais devem ser rigorosamente justificadas, com especial atenção aos horários de entrada e saída dos alunos. Além disso, o Tribunal ordenou a elaboração de um plano para a recuperação de territórios ocupados por organizações criminosas e a instauração de inquéritos pela Polícia Federal para investigar crimes com repercussão interestadual e internacional. Os impactos a longo prazo dessas decisões ainda são incertos. ​

“Não é que as pessoas sejam contra a segurança pública”, explica Flavia. “Mas a segurança deveria ser preventiva. O que acontece hoje gera mais medo do que qualquer outra coisa.”

Para Emmanuelle Torres, a desigualdade começa na carga horária reduzida e levanta um questionamento: “Se um estudante da Maré já tem menos tempo de aula e ainda perde dias letivos por operações, como ele vai competir por uma vaga na universidade?”

Stefani, que cresceu entre tiroteios e hoje estuda na universidade, diz que a violência na comunidade com certeza impactou minhas escolhas. “Se houvesse mais apoio, menos jovens se envolveriam com o crime. Mas, ao mesmo tempo, foi isso que me fez querer buscar uma saída.”

Para Stefani, a mudança vem da própria comunidade. “Tem muita gente criativa dentro da favela. A gente só precisa ser visto de outra forma. Quero que outros jovens vejam que, apesar de tudo, é possível ocupar espaços através da educação.”

Raphael Lisboa, agora na universidade, faz um alerta: “Minha trajetória acadêmica foi possível, mas muitos dos meus colegas não tiveram a mesma sorte. Uns saíram, outros ficaram pelo caminho. Oito ou oitenta. Ou você escapa, ou se perde.”

Apesar das dificuldades, a esperança persiste. Organizações comunitárias oferecem suporte pedagógico e psicológico aos estudantes. Flávia acredita que essas iniciativas são essenciais, mas ressalta: “A reposição de aulas deveria ser garantida pelo Estado.”

Em nota ao Rampas, a Secretaria do Município do Rio de Janeiro disse que busca minimizar os impactos causados nas escolas em decorrência da violência e afirma  oferecer estratégias de apoio pedagógico e reforço escolar com o uso de materiais específicos para reposição. Além disso, alega seguir o protocolo “Acesso Mais Seguro”, considerado referência, em parceria com a Cruz Vermelha Internacional, o qual envolve critérios técnicos como; o monitoramento permanente da situação em cada território e a atualização e treinamento das forças policiais.




Comments


O site Rampas é um projeto criado por alunos de jornalismo da Uerj, sob supervisão da professora Fernanda da Escóssia.

©2024 por Rampas. Orgulhosamente criado com Wix.com

bottom of page