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  • Foto do escritorEnzo Anselmo

Torcida corintiana abre portas de estádios para autistas

Atualizado: 4 de mai.

Organizada Autistas Alvinegros aposta em inclusão e acolhimento na arquibancada


Rafael e Juliana (de camiseta branca) à esquerda, com outros torcedores, levam a faixa da torcida para o evento “Caminhada pelo autismo”. Foto: Rafael Lopes

Juliana Prado, de 31 anos, e Rafael Lopes, de 36 anos, ambos diagnosticados tardiamente com autismo, têm mais em comum do que o diagnóstico e alguns traços comportamentais característicos da condição. Eles descobriram que compartilham um amor incondicional pelo Corinthians.


Juliana e Rafael se conheceram enquanto trabalhavam juntos nos Correios. Durante uma conversa sobre o então recente diagnóstico de Rafael, Juliana percebeu que também poderia estar no espectro autista. Após consultar um psiquiatra, ela recebeu a confirmação e compreendeu por que havia enfrentado crises de identidade, ansiedade e depressão na adolescência, além de dificuldades de se encaixar em grupos.


Depois, descobriram seu amor pelo Corinthians. Juliana se encantou pelo clube aos 4 anos, quando ganhou de sua irmã mais velha um quadro de crochê com o escudo corintiano. Rafael tornou-se torcedor aos 5 anos, quando seu pai o levou ao estádio do Pacaembu pela primeira vez. Resolveram então fundar uma torcida organizada para agregar torcedores que,como eles, têm um jeito especial de apoiar o clube. Aí surgiu, em 2022, a Autistas Alvinegros. Embora o ambiente de um estádio de futebol, com barulhos altos, hinos cantados em tom de grito e pessoas suadas pulando e se abraçando, possa ser desafiador para muitas pessoas no espectro autista, na torcida eles se sentem mais protegidos.


A primeira organizada idealizada para pessoas com essa condição foi a Autistas da Ilha, criada em 2020 para apoiar o Sport Club Recife. Hoje estão registradas, ao todo, 16 torcidas voltadas para esse segmento no país.


Mas afinal, o que é autismo?


De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o transtorno do Espectro do Autismo (TEA) é um distúrbio no desenvolvimento do cérebro que afeta a habilidade de interação com pessoas e o ambiente. Essa condição geralmente se manifesta durante a primeira infância.

No entanto, o que poucos sabem sobre o TEA é que ele varia de um indivíduo a outro, sendo cada caso único. O autismo é classificado em três níveis que correspondem ao grau de gravidade - ou necessidade de suporte - de cada pessoa. Esses níveis são: nível 1, com necessidade mínima de suporte; nível 2, com necessidade moderada de suporte; e nível 3, com necessidade substancial de suporte.


Conforme o relatório de Monitoramento de Autismo e Deficiências do Desenvolvimento do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, 1 em cada 36 crianças com 8 anos de idade é diagnosticada com Transtorno do Espectro Autista (TEA).

Com base nesse cálculo, estima-se que aproximadamente seis milhões de pessoas no Brasil estejam dentro do espectro autista no Brasil. Esses indivíduos, que incluem desde crianças pequenas até idosos, estão presentes e frequentam diversos locais públicos.


Tanto Juliana quanto Rafael estão no nível 1 e têm como um de seus hiperfocos (estado de concentração intensa, voltada para uma tarefa ou um conjunto de estímulos específicos) o Corinthians. Ambos relatam que gostam muito de ir ao estádio, mas que o ambiente muitas vezes faz com que eles se sintam sobrecarregados.


Juliana conta que foi assistir a um jogo ao vivo pela primeira vez em 2022, no Parque São Jorge, durante a final do campeonato brasileiro feminino de futebol: “Diria que estive presente em 90% dos jogos na Neo Química Arena - e alguns jogos do time feminino no Parque São Jorge também. Como sempre foi meu sonho acompanhar o Corinthians, inicialmente não tive muitos problemas, pois estava vivendo um Hiperfoco.”


Porém, Juliana também relata que suas hipersensibilidades a certos estímulos, característicos do autismo, a impedem de ir ao estádio tanto quanto gostaria: “Tenho sensibilidade a sons agudos, à claridade, luzes LED e sirenes. Só tive crises de ansiedade ao ir para o estádio e me senti sobrecarregada ao voltar. Neste ano, tenho percebido que os sons da torcida têm me incomodado durante o jogo. Inclusive, tenho evitado ir ao estádio por um tempo, justamente para respeitar meus limites.”, disse.


Por outro lado, Rafael sempre frequentou estádios desde o início de sua trajetória como torcedor. Por isso, ele relata que não sofre tanto com sua sensibilidade ampliada durante as partidas: “Eu sempre fiquei no meio da torcida, e devido ao meu interesse intenso, não tenho muitos problemas sensoriais.” Após os jogos, porém, a sobrecarga sensorial acaba sendo bastante intensa: “Os diversos estímulos durante as partidas me deixam muito exausto, por isso, procuro me isolar um pouco até me recuperar”, acrescentou.


Mais que uma torcida, uma família



Concentração da Autistas Alvinegros | Reprodução: Instagram de Rafael Lopes.

Foi Rafael quem teve a ideia de criar a emblemática faixa, constantemente exibida na Neo Química Arena. “Certa feita, vi uma bandeira com o símbolo do autismo em um jogo do Sport Clube do Recife. Tão logo conversei com a Juliana e confeccionamos a faixa.”, relembrou.

Juliana explica que os dois tinham o desejo de fazer algo que conscientizasse as pessoas, e a faixa foi a maneira encontrada para isso. “À medida que a faixa foi exposta pela primeira vez na arena, começamos a chamar atenção e, consequentemente, a crescer. Naquela época, não tínhamos um meio de divulgação, apenas levamos a faixa e fizemos alguns registros.” relata a fundadora.


Ela complementa dizendo que, no final da partida, amigos e familiares informaram à Juliana e Rafael que algumas pessoas estavam procurando informações sobre a faixa, querendo saber mais sobre ela. “Imediatamente, criei uma página no Instagram e, ao longo do dia, começamos a ganhar seguidores e receber fotos e elogios.”


Tanto Rafael quanto Juliana explicam que não esperavam que a faixa fosse alcançar tamanho reconhecimento, mas desde o início, seu objetivo era transmitir a mensagem às pessoas. "Nunca imaginei que isso tomaria tal proporção, desde o dia em que o Rafa me apresentou a ideia até o primeiro dia em que levamos a faixa para a arena. Eu pensava que as pessoas apenas a veriam, mas não dariam tanta importância. Hoje o sentimento é de gratidão por todo o apoio, mas também de imenso orgulho por fazer parte desse projeto que promove a conscientização, ajudando autistas a se compreenderem e evitarem passar pelo sofrimento que eu passei antes de receber meu diagnóstico." Rafa complementa: "Sinto orgulho ao ver a dimensão que isso alcançou. Confesso que não esperava tamanha repercussão, mas é extremamente gratificante."


Segundo Juliana, a Autista Alvinegros é mais do que uma torcida, funcionando também como uma ampla rede de apoio para todas as famílias e indivíduos envolvidos. As famílias trocam experiências e compartilham vivências relacionadas ao autismo, sempre auxiliando pais que lidam com o diagnóstico recente de seus filhos e indicando profissionais de diversas áreas.


Relação com o clube e a torcida


No que diz respeito à relação com as outras torcidas organizadas do Corinthians, Juliana explica que nunca houve problemas com elas e que todas sempre receberam a torcida autista de maneira muito positiva. "Mantemos contato constante com a grande maioria delas e participamos de eventos nas sedes dos Gaviões da Fiel e do Estopim da Fiel. Também discutimos ações conjuntas, pois as organizadas possuem um departamento social e estão sempre apoiando diversas causas."


O clube também desempenha um papel muito importante na inclusão, pois a Neo Química Arena é o único estádio no Brasil que oferece uma sala adaptada para que autistas e seus familiares possam assistir aos jogos, além de disponibilizar fones abafadores para aqueles que utilizam a sala. Além disso, o Corinthians concede isenção de ingressos para autistas e pessoas com deficiência desde os anos 80. Os autistas podem se cadastrar de duas formas: como TEA, o que dá acesso apenas ao setor oeste superior (sala TEA e arquibancada ao lado), ou como PCD, permitindo acesso a todas as arquibancadas (exceto oeste superior). No entanto, enquanto os autistas têm direito a meia-entrada para até 3 acompanhantes, no modo PCD a meia-entrada se estende apenas a um acompanhante.



Rafael e Juliana e outros membros da torcida no setor oeste superior | Reprodução: Instagram de Rafael Lopes.

Quanto à participação dos jogadores, Juliana aponta o goleiro Cássio como o principal embaixador da torcida. Ídolo do Corinthians, com mais de 600 partidas disputadas e diversos títulos conquistados, o goleiro alvinegro também é um exemplo fora dos gramados. Muito disso é influenciado pelo fato de o atleta ter uma filha autista. Maria Luiza, de quatro anos, está dentro do espectro de crianças diagnosticadas com TEA.


Em entrevista concedida ao Globo Esporte ano passado, Cássio conta que conheceu os dirigentes da torcida no próprio Centro de Treinamento do clube. “Vi que são pessoas sérias. Como pai, quanto mais eu puder saber sobre autismo, até para dar suporte para minha esposa e para minha filha evoluir, eu vou fazer.” Embora o capitão da equipe dê esse exemplo tão positivo, nenhum outro jogador demonstrou apoio à causa publicamente. “Tivemos a oportunidade de encontrar alguns jogadores, que nos parabenizaram e tiraram fotos com nossos itens, mas ninguém se manifestou, nem mesmo em apoio ao Cássio”, relembra Juliana


Lentas mudanças


E a cada dia, mais e mais vitórias vão sendo alcançadas. O exemplo mais recente aconteceu no início de julho, mais especificamente na terça-feira, dia 04/07. Neste dia, o então prefeito do Rio Eduardo Paes sancionou Projeto de Lei 453-A/2021, que obriga estádios na cidade a terem espaços reservados para pessoas com TEA. A lei prevê que todos os estádios com capacidade superior a 5 mil pessoas na cidade do Rio de Janeiro terão de se adaptar e criar um espaço reservado para receber pessoas com TEA. A lei também diz que 0,5% do total de ingressos disponibilizados para cada jogo tem de ser destinado a pessoas com autismo. Além de estádios, a regra vale para ginásios e arenas esportivas em geral com capacidade superior a 5 mil pessoas.

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