Na trama da trança, empreendedoras negras entrelaçam estilo, ancestralidade e negócio
- Vinícius Feliciano
- 31 de mai.
- 6 min de leitura
Atualizado: 7 de jun.
Trancistas conseguem transformar atividade cotidiana em fonte de renda, ancestralidade e negócio
Por Vinicius Feliciano

Separar as mechas, aplicar pomada capilar e trançar os primeiros fios. É assim que começa o ritual da trança nagô, um penteado que carrega mais do que estética: expressa ancestralidade, identidade cultural e força. Para muitas mulheres negras, trançar cabelos virou também oportunidade de negócio e caminho para a independência financeira. “Eu trabalhava na área da beleza como manicure e sempre fazia penteados nas minhas sobrinhas, até que as minhas clientes começaram a se interessar por esse serviço também”, narra a carioca Lidiane Cristina, de 33 anos, trancista desde os 17.
Assim como Lidiane, Lorena Cardoso, de 23 anos, estudante de Relações Públicas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) deu os primeiros passos no ofício de trancista na adolescência. Aos 15 anos, ela começou trançando o próprio cabelo e logo conquistou sua clientela. “A maioria dos clientes eram amigos, que iam indicando para conhecidos. Quando vi, já estava atendendo com alguma frequência” afirma Lorena.
Kelly Endaman, natural da Guiné Equatorial e estudante de Jornalismo da Uerj, começou no trabalho por necessidade. Durante a pandemia, quando seu pai que a ajudava financeiramente ficou desempregado, ela encontrou nas tranças uma forma de se manter. “Eu sabia trançar, mas nunca pensei em trabalhar com isso. Até que, no final do ano, época em que muitas pessoas buscam pelo serviço, aceitei ajudar uma amiga do meu namorado que tinha um salão de beleza. Depois disso, as clientes começaram a me procurar direto. Diziam que eu tinha mão leve”, relata a estudante, que criou um perfil nas redes sociais para divulgar seu trabalho.
A arte de trançar
A produção das tranças exige dedicação. O tempo de trabalho varia conforme a técnica: tranças nagô, por exemplo, podem levar cerca de duas horas; as Box Braids até seis; já as mega-tranças podem ultrapassar oito horas de preparo. Assim, só é possível atender de dois a três clientes por dia, segundo Lidiane.

Os materiais utilizados também variam de acordo com o estilo da trança. As nagô e box braids utilizam fibra sintética (Jumbo, Kanekalon, lã ou fibra de seda); já a mega-trança, como o nome diz, utiliza o mega hair em conjunto com os fios. Outros estilos podem recorrer ao uso de linhas. Pentes, pomadas, mousses, anéis e presilhas também auxiliam na execução e fixação do trançado.
Por isso, a cobrança pelo serviço depende do custo de todos esses materiais, além da mão de obra da trancista. “Cobro entre R$150 e R$200 pelo trabalho, mais o valor dos fios e os produtos”, detalha Lidiane, que estima que o total do serviço pode chegar a R$388.
As formas de atendimento são diversas, porém a mais comum é o atendimento à domicílio. A guiné-equatoriana Kelly, que chegou ao Brasil em 2019, já experimentou diferentes esquemas de trabalho. “Fiz várias clientes na zona sul, mas me mudei e até consegui abrir um salão em Manguinhos. Só que, com a violência no entorno, acabei fechando”, conta. Hoje, ela aluga um espaço em um salão de beleza no bairro de Quintino Bocaiúva, na Zona Norte do Rio.
A força do empreendedorismo feminino
Para mulheres como Lidiane, Lorena e Kelly, empreender não é apenas uma escolha, é uma necessidade. E conciliar a gestão de um negócio com as responsabilidades domésticas e familiares ainda é uma realidade enfrentada por grande parte das empreendedoras brasileiras. “Elas acumulam uma jornada dupla e ainda lidam com obstáculos como a discriminação de gênero e a dificuldade de acesso ao crédito”, explica Ronaldo Chataignier, professor do curso de Administração da Uerj. Apesar das barreiras, o especialista afirma que há estudos indicando que os negócios liderados por mulheres tendem a adotar práticas mais sustentáveis, comunitárias e voltadas ao impacto social, elementos que reforçam o papel transformador do empreendedorismo feminino.
No caso das trancistas, formalizar a atividade como Microempreendedora Individual (MEI) é um passo importante rumo à profissionalização. O registro pode ser feito na categoria que inclui cabeleireiros, manicures e outras atividades de beleza. “Esse cadastro permite acesso a CNPJ, emissão de nota fiscal, contribuição ao INSS e a possibilidade de crédito com juros mais baixos”, explica Chataignier. Além disso, o cadastro de MEI dá direito a benefícios previdenciários como salário-maternidade, aposentadoria por idade ou invalidez, auxílio-doença e pensão por morte para os dependentes.
De acordo com o Panorama do Empreendedorismo Feminino, elaborado pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), no primeiro quadrimestre de 2024, o trabalho por “conta própria” – que inclui autônomas e microempreendedoras individuais –, representava 23% da força de trabalho feminina no Brasil. Esse número fica atrás apenas das mulheres empregadas no setor privado, que somam 37%.
Outro levantamento sobre Empreendedorismo Feminino feito pelo Sebrae no final de 2024 aponta que cerca de 10,4 milhões de mulheres são donas do próprio negócio no Brasil, número que cresceu 33% na última década. As motivações para empreender podem ser diversas, mas a principal delas é o sustento da família. Conforme o estudo do Sebrae, 52% das empreendedoras são chefes de família, ou seja, são as principais responsáveis pela renda do lar.
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC), realizada em 2021 pelo IBGE, revelam que os negócios pertencentes a mulheres negras tendem a ser de menor porte e apresentam um menor grau de formalização. Apenas 24% dos empreendimentos de mulheres negras são formalizados, em comparação a 41% entre os de mulheres brancas. As disparidades também se mostram na renda: enquanto as mulheres brancas empreendedoras têm uma média de rendimento mensal de R$2.706, as mulheres negras recebem, em média, R$1.852 – uma diferença de 32%. Apesar desse cenário desigual, o relatório técnico do Sebrae sobre Empreendedorismo Feminino indica que, a partir da pandemia de COVID-19, o número de negócios liderados por mulheres negras tem apresentado crescimento.
Evolução do número de mulheres negras donas de negócios (2014–2024):
O Relatório Técnico Empreendedorismo Feminino no Brasil do Sebrae, com base em dados da PNADC, indica crescimento na proporção de empreendimentos liderados por mulheres negras nos últimos anos. (Fonte: PNADC - IBGE)
Empreender para o bem viver
A tendência em buscar novas formas de empreender vem da movimentação de mulheres em construir uma autonomia financeira e suprir necessidades do dia a dia. “Hoje, a visibilidade das tranças é bem maior. Tendo uma boa organização financeira, dá para fazer uma renda boa e viver bem”, afirma Lidiane. “A internet está aí para ajudar a gente a divulgar o nosso trabalho, é uma ótima forma de captar clientes”, avalia Lorena.
Essas ferramentas digitais foram essenciais para Kelly. “Além de trancista, eu quero ser influencer. Já consigo até monetizar meu conteúdo nas redes sociais”, disse a estudante de jornalismo, que acumula mais de 400 mil seguidores no TikTok.
Confira um dos conteúdos produzidos por Kelly nas redes sociais:
Já Lorena, que concilia estágio e faculdade, vê as tranças como uma renda extra. “Intensifico os atendimentos no final do ano, quando a demanda cresce e tenho mais tempo livre com as férias da faculdade”, diz a graduanda em Relações Públicas.
Da tradição ancestral à afirmação de identidade
As tranças têm raízes profundas no continente africano. Ao longo da história, elas serviram como forma de comunicação entre pessoas, marcador de status social e também como proteção do couro cabeludo e dos fios contra o clima extremo, especialmente em situações de calor intenso e baixa umidade do ar. Essa tradição chegou a Kelly de maneira natural. Nascida na Guiné Equatorial, país da África Central, ela cresceu em um ambiente onde trançar fazia parte da rotina. “As tranças são parte da minha cultura. Já na infância começamos a trançar nossas bonecas e irmãs para ir à escola”, narra Kelly, relembrando seu primeiro contato com a técnica.
Hoje, em diferentes partes do mundo, as tranças ultrapassam a função estética e prática: tornaram-se símbolos de identidade, resistência e representatividade para pessoas negras. “Fui uma criança que implorava para a mãe alisar o cabelo porque sofria bullying na escola”, relembra Laiza Villaça, estudante de jornalismo da Uerj, ao contar sua trajetória de valorização de seu cabelo natural. “Conheci as tranças quando comecei a me entender como mulher negra e fui me aceitando.” Sem referências de cabelo crespo em casa, a estudante começou a experimentar penteados afro em si com a ajuda de sua tia e de tutoriais da internet. “ Em 2022, comprei um jumbo, a fibra sintética para fazer penteados, para testar. A partir de então, fui inventando meus próprios truques para trançar.”

A experiência de Laiza reflete a de tantas outras pessoas negras, que só depois de anos conseguem se reconhecer e se inspirar em referências que representam suas características naturais. “O cabelo crespo é um cabelo carregado de significados sociais”, afirma Marcelle Felix, pesquisadora do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP), da Uerj. “Até pensando no aspecto diaspórico, em vários lugares do mundo, existe essa frase de luta: ‘Black is beautiful’ [O negro é lindo, em tradução livre]. Essa expressão extrapola a aparência e, no caso das mulheres negras, carrega um peso ainda maior, porque une as questões de raça e gênero”, conclui a socióloga.
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