True crime na cidade dos mortos
- Camille Mello

- 15 de jul.
- 7 min de leitura
Iniciativa carioca transforma cemitérios em roteiros turísticos guiados e revela histórias marcantes por trás das lápides
Por Camille Mello

Em um sábado típico de céu azul na Zona Sul carioca, 29 pessoas se reúnem em um lugar incomum: o Cemitério São João Batista, em Botafogo. O Rampas acompanhou a visita guiada promovida pelo NecroturRJ, projeto criado pela guia turística e pedagoga Samantha Lobo, que transforma cemitérios em espaços vivos de memória, história e reflexão.
Mais comum em países europeus e em nações sul-americanas como Argentina, Equador e Chile, o necroturismo ou turismo funerário é a prática de visitar cemitérios para explorar seu patrimônio artístico, arquitetônico, histórico e cultural. Enquanto nesses países os cemitérios são vistos como museus a céu aberto, no Brasil essa ainda é uma ideia cercada de resistência. Por aqui, as necrópoles continuam fortemente associadas ao luto e à tristeza. Mas iniciativas como o NecroturRJ vêm mudando essa percepção, especialmente entre os cariocas, ao mostrar que esses espaços também guardam memórias fundamentais para entender a cidade.

Como em qualquer visita guiada a pontos turísticos, o passeio pelo Cemitério São João Batista segue um roteiro previamente definido. O Rampas acompanhou por pouco mais de 2h o “Necrotour Crimizeiro”, uma edição voltada especificamente a crimes emblemáticos ocorridos no Rio de Janeiro, cujas vítimas ou autores estão sepultadas no local. Além desse percurso temático, o NecroturRJ também promove roteiros dedicados a túmulos de artistas e personalidades notáveis.
Entre os 224,8 mil m² do cemitério, a guia Samantha Lobo narra a história trágica de Mônica Granuzzo, jovem de 14 anos que, em 1985, morreu após ser espancada e cair do sétimo andar de um edifício no bairro da Lagoa tentando escapar de um estupro. O crime chocou o país e inspirou a música “Mônica”, de Ângela Rô Rô.
“Ouvir histórias de crime, para mim, é uma forma de lidar com os próprios medos. Quando eu tinha dez anos, ouvi notícias sobre o caso da Mônica e isso me marcou muito. Me chocou, mas a partir de então eu me tornei mais atenta a essas situações”, explicou a guia turística.

O roteiro relembra ainda o assassinato da atriz Daniella Perez, em 1992; a execução da estudante e militante Ana Maria Nacinovic, em 1972; a morte da estilista Zuzu Angel, em 1976, num acidente de carro posteriormente reconhecido como uma ação clandestina da ditadura militar; e a história do traficante William da Silva Lima, fundador do Comando Vermelho, morto em 2019. “A diferença de contar essas histórias aqui, no cemitério, é que elas são materializadas. Dá uma concretude para os crimes. É muito mais profundo do que ver uma foto das vítimas”, diz Samantha.
Quando o tabu vira curiosidade
Pedagoga, professora da rede pública e guia de turismo certificada, Samantha Lobo, 50, começou a ver os cemitérios com outros olhos quando lecionava no Ciep Henfil, no bairro do Caju. Ainda nos anos 90, Samantha observava não só o Cemitério de São Francisco Xavier de sua sala de aula, mas também a naturalidade com que seus alunos tratavam o espaço. “No recreio, as crianças iam pegar manga nas árvores do cemitério. Percebi que, para quem vivia ali no entorno, o cemitério não era um tabu. Isso me fez repensar minha relação com esse espaço, que, na minha infância, era quase proibido”, conta ela, que hoje dirige uma creche da prefeitura na Maré, Zona Norte do Rio.
A ideia amadureceu após uma viagem à Argentina, em 2010, onde conheceu o Cemitério da Recoleta, em Buenos Aires. A experiência serviu de inspiração para iniciar um projeto semelhante no Brasil — embora, na época, a proposta tenha sido mal recebida. “Achavam que eu era louca e o projeto não foi para frente”, conta. Foi apenas em 2023, após participar de passeios promovidos pelo projeto “O que te assombra?”, em São Paulo, e de ter feito o curso de guia de turismo durante a pandemia que Samantha decidiu lançar o NecroturRJ oficialmente.
Dois anos após sua criação, os perfis do projeto nas redes sociais somam mais de 60 mil seguidores e Samantha vê o grupo de participantes aumentar a cada passeio. “A média era 15 pessoas por passeio, hoje vieram 29, e muita gente nova. Isso que é legal”, comenta a idealizadora da iniciativa. Segundo ela, o público é variado em relação à faixa etária, mas com um perfil comum: pessoas que moram no Rio e que sempre tiveram curiosidade sobre a visitação em cemitérios, mas nunca encontraram companhia.

Os passeios promovidos pelo NecroturRJ acontecem em geral aos sábados, duas vezes por mês, e são gratuitos – as datas e informações de inscrição são sempre divulgadas com antecedência por meio das páginas do projeto no Instagram e Tiktok. Ao fim da visita, os participantes podem contribuir com colaborações voluntárias de qualquer valor, como forma de apoiar o trabalho da guia e a continuidade do projeto. Além do Cemitério São João Batista e do Cemitério de São Francisco Xavier, o projeto atua nos cemitérios da Penitência, também no Caju, São Francisco de Paula, no Catumbi, e até mesmo na Ilha de Paquetá.
Parte da pesquisa é feita “batendo perna”. Samantha explica que nem todos os túmulos estão mapeados, e muitas vezes é preciso vasculhar lápide por lápide. “Alguns cemitérios oferecem listas dos túmulos famosos, mas muitos nomes exigem garimpo mesmo. Procurando um, acabo descobrindo outro por acaso”, conta.
Entre os achados, estão histórias pouco conhecidas. “Por exemplo, aqui temos o túmulo da Carmen Miranda, que ninguém imagina que foi amiga de Madame Satã. São essas conexões que eu incluo nos passeios”, diz. A guia também organiza passeios privativos e visitas com escolas e universidades, apostando na educação como ferramenta de ressignificação da morte.
Um novo olhar sobre a cidade
“A gente precisa falar sobre a morte, que é inevitável. É claro que ela assusta, mas quando você começa a conversar sobre o tema, já começa a elaborá-lo de outra forma”, afirma Samantha. Para ela, conhecer os cemitérios é também compreender a cidade e suas estruturas sociais. “O cemitério explica a cidade. As desigualdades sociais aparecem até no modo como as pessoas são enterradas. O lugar que a pessoa ocupou em vida se reflete também no seu lugar na morte. Dentro do cemitério, é possível discutir qualquer tema sociológico ou filosófico, é um livro aberto.”
Embora algumas iniciativas busquem estimular a visitação a cemitérios no Rio – como a instalação de QR codes em jazigos de figuras notáveis no Cemitério São João Batista, permitindo que visitantes acessem informações sobre os falecidos diretamente pelo celular –, Samantha acredita que a cidade ainda valoriza pouco o potencial do necroturismo. “Tem muita coisa errada. Os cemitérios ficaram anos abandonados sob a gestão da Santa Casa, e isso nos deixou muito atrasados”, afirma. “Diferente de São Paulo, que já começou a valorizar esses espaços, o Rio ainda não enxerga o cemitério como lugar de cultura, história, turismo e educação.”

Durante a visita, alguns participantes demonstraram como o passeio afetava suas visões sobre a cidade, a história e a própria relação com a morte. Para a professora Manuela Santiago,40, que já participou de outras edições do passeio, a experiência trouxe uma nova perspectiva. “Tem muitas questões culturais, até as esculturas nos túmulos têm toda uma história por trás. Assim, eu comecei a me interessar, e sempre que tem os passeios eu procuro frequentar.”
Já o publicitário João Ricardo Campos, 38, manauara que vive em Niterói há uma década, disse que a visita guiada uniu interesse pessoal com memória afetiva. “Sempre gostei de arte tumular, e do ambiente do cemitério como um museu a céu aberto. Consumo esse tipo de conteúdo nas redes sociais, e foi assim que descobri o NecroturRJ. É a primeira vez que participo de uma visita guiada como essa, achei super interessante.” Ele conta que não teve tabu: “Cresci numa família que visitava cemitérios em datas especiais, então era algo natural para mim.”

Conterrânea de João Ricardo Campos, a analista de dados Vanessa Rocha, 29, mora no Rio há seis anos e também conheceu o projeto pelas redes sociais. Ela conta que, além de relembrar a tradição de visitar cemitérios com avó em Manaus, viu no passeio do NecroturRJ uma chance de conhecer gente nova. “Sempre gostei desse tipo de curiosidade, sobre crimes ou o sepultamento de celebridades. Foi muito legal estar nesse ambiente e conhecer pessoas de várias idades com esse mesmo interesse.”
Para o estudante de jornalismo Matheus Fernandes, 20, o passeio representou um rompimento com antigas crenças. “É a primeira vez que eu entro em um cemitério. Sempre me foi jogado um medo sobre esse lugar quando eu era criança, mas isso foi passando, e comecei a achar que poderia ser algo normal. E foi um passeio tranquilo.” Ele se surpreendeu com o conteúdo abordado: “Foi uma experiência nova, diferente. A gente ouve muito falar sobre os famosos que estão enterrados aqui, mas eu não conhecia essa parte criminal. Ter a oportunidade de conhecer essas histórias foi bem interessante.”
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