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  • Foto do escritorGuibsom Romão

Um muro para Caymmi

Atualizado: há 6 dias


Compositor baiano será homenageado pelo projeto Negro Muro, que celebra personalidades históricas nas ruas do Rio 


Um projeto criado em 2018, o Negro Muro, homenageia personalidades negras brasileiras nas ruas do Rio de Janeiro. Até hoje, 56 nomes de diferentes áreas da história e da cultura brasileiras, do abolicionista Luiz Gama à cantora Alcione, já tiveram seus rostos estampados pela cidade. E, a depender dos criadores do projeto, o artista Cazé e o pesquisador Pedro Rajão, o compositor baiano Dorival Caymmi será o próximo: vai ganhar um muro com seu rosto no Grajaú, zona norte do Rio.


O projeto começou quando Cazé estava pintando um mural do multi-instrumentista nigeriano Fela Kuti no Grajaú. O muro apareceria num documentário de Rajão sobre a vida e a memória do artista nigeriano. Os dois começaram então a refletir sobre a ausência de estátuas em homenagem a personalidades negras e a falta de referências negras nas ruas do Rio de Janeiro. Daí surgiu a ideia de pintar figuras pretas pela cidade, de preferência num território ligado à história da pessoa.


“O negro muro número zero, que a gente considera, foi o Fela Kuti no mural no Grajaú, na Rua Nossa Senhora de Lourdes”, afirma Rajão. Em primeira mão, ele contou ao Rampas sobre o próximo muro, que será pintado na mesma rua em homenagem a Caymmi, que morou no bairro na década de 1940.


Pesquisas e reportagens têm mostrado que, nas ruas brasileiras, os principais homenageados são homens, muitas vezes políticos, e de maioria branca. Esta reportagem do Portal Metrópoles mostra que quase 4 mil vias públicas homenageiam líderes e torturadores da ditadura militar. De acordo com este levantamento da Gênero &Número, apenas 20% dos logradouros brasileiros têm nomes de mulheres.



A cada projeto, um processo e uma história diferente


O projeto já está no seu 56º muro. Figuras como Alcione, Pixinguinha, a atriz Ruth de Souza, os cantores e compositor Luiz Melodia e Djavan, a compositora e instrumentista Chiquinha Gonzaga e a antropóloga Lélia Gonzalez já foram homenageadas. A  vereadora Marielle Franco ganhou um mural em sua homenagem um dia depois do seu assassinato, em março de 2018. Cazé conta que durante a pintura eles sofreram retaliação.


“Assim que soubemos da morte dela, a gente pensou em materializar essa história e de alguma forma chamar a atenção para o assassinato. O mural era o mínimo que poderíamos fazer, e ele nem está à altura de fato da memória e história da Marielle, mas foi uma  homenagem que a gente tentou prestar. Fizemos duas  Marielles, a primeira e a segunda um pouco depois, pois  eu nem achava que o retrato estava à altura do que ela merecia, então refiz”, lembra. E segue: “Na época a gente sofreu algumas pressões policiais, carros de polícia passando em sequência, transeuntes xingando ela, vários ataques racistas que me chocaram bastante. Foi bem triste ver do que a população é capaz”, relembra Cazé.


Na concepção de um mural, os idealizadores dividem tarefas. “A pesquisa fica por conta do Pedro, pesquisador e produtor do projeto. Muitas histórias surgem no decorrer dos murais, às vezes surge um personagem novo ali mesmo. Enquanto a gente está pintando a gente descobre a vida de alguma pessoa ali perto. O mapeamento também é dele, ele já vem pesquisando a memória negra da cidade há muitos anos”, afirma Cazé.


Segundo ele, a pintura acontece sempre com autorização da família do homenageado. “Remexer o baú da vida de uma pessoa que já partiu ou que está viva é complicado, às vezes ela não quer tocar em determinados assuntos. Nosso muro é uma biografia exposta”, conta Cazé. 


Rajão reforça a necessidade de que a pesquisa seja bem feita e de maneira consensual com o homenageado ou a sua família. “Para realizar a pesquisa preciso consultar a família sempre, por uma questão de respeito, de acervo, e a gente sempre pede a bênção dos familiares ou da própria pessoa. A gente também convida para a inauguração, para cortar a faixa, o que eu acho que dá muito mais sentido para a questão afetiva que a gente está buscando ao tratar aquela memória, aquele homenageado”, conta Rajão.


Os artistas ressaltam que, assim como esses homenageados, cada muro é único, com particularidades, dificuldades, prazos e processos. Existem murais a alguns metros do chão, como o da atriz Ruth de Souza, em uma parede lateral do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Outros, como o de Marielle, podem ser pintados no chão.


“O tempo para ficar pronto é relativo. Depende do tamanho do muro, da inclinação da rua, se é andaime, se é na escada, se é num balancinho, se temos plataforma, se está chovendo…varia demais. Grandes murais costumam demorar em torno de 15 dias, como o da Ruth de Sousa no Municipal e o do Pixinguinha no MIS. Murais de tamanho médio, como do Melodia, como do Paulinho da Viola, do Martinho da Vila, do Zé Espinguela, esses demoram de quatro a cinco dias. Já murais menores, como da Chiquinha Gonzaga, como da própria Marielle, do Januário Garcia, o Cazé mata em um dia”, contou Rajão.


Segundo ele, o projeto Negro Muro se mantém financeiramente de diversas formas, via inciativa privada, por demanda de órgãos públicos, como prefeituras e ministérios, doações de seguidores das redes sociais e até captação de porta em porta, como no muro do advogado Luiz Gama.


“Cada muro é uma fonte diferente. A gente acabou de pintar uma exposição para o Ministério da Saúde em Brasília e agora vai pintar, entre o final de abril e início de maio, dois muros dentro da Fiocruz homenageando técnicos de laboratório negros da instiuição, um dos dois muros será dedicado ao Joaquim Venâncio que foi um importante técnico de laboratório da fundação. O muro que a gente pintou no Salgueiro foi uma iniciativa da NFT. Para o muro do Luiz Gama, a gente bateu na porta de 15 escritórios de advocacia e cada um deu uma cota de patrocínio até chegar no valor que a gente precisava. Pintamos alguns muros que foram financiados pela Secretaria de Educação, outro pela Secretaria de Cultura, cada muro é um processo diferente”, diz Rajão.




Ganhando espaço fora do Rio e as telas de TV


Com a notoriedade dos murais, o projeto foi chamando a atenção nas redes sociais. A dupla foi chamada para fazer outros muros fora do Rio de Janeiro. Além dos projetos em Brasília, o Negro Muro já esteve em Jacareí – SP e em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, onde foi pintado o muro em homenagem ao marinheiro João Cândido, o líder da Revolta da Chibata, em 1910, contra os castigos corporais na Marinha. João Cândido foi expulso da Marinha em 1912, mesmo tendo recebido anistia póstuma do então presidente Lula em 2008, o marinheiro teve a sua reintegração à Marinha do Brasil vetada pelo governo no mesmo ano e é o “almirante negro” homenageado no samba de João Bosco e Aldir Blanc. Já foi aprovado no Senado um projeto que inclui João Cândido no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. O muro fica justamente na casa onde o marinheiro residiu entre 1930 e 1969.


“Sair da cidade do Rio de Janeiro, sem dúvida, é sempre o nosso maior desafio. A gente entregou uma exposição agora em Brasília, no Ministério da Saúde, uma exposição fixa com quatro obras falando sobre a vida e a memória da Dona Ivone Lara, um dos túneis que conectam os dois prédios do Ministério da Saúde, passou a se chamar Túnel Dona Ivone Lara”, conta Cazé. 


Os dois criadores do Negro Muro sabem que o projeto, como todas as artes visuais urbanas, é efêmero. Mesmo assim, têm uma preocupação com a preservação desses murais, expostos à deterioração causada pelo sol, pela chuva e por ações humanas. Por conta disso, Cazé afirma que há um cuidado com o muro antes da pintura ser realizada.


“Durante o mapeamento, a gente já vai com um pedreiro para esse muro ter uma longevidade maior. Então o muro que iria durar um ano na rua, ele passa a durar dois, três anos, às vezes até mais”, conta o pintor.


O Negro Muro já foi retratado na série audiovisual do mesmo nome, transmitida pelo Canal GNT e disponível no Globoplay. Com 6 episódios sobre o processo de pesquisa de pintura de cinco muros que homenageiam mulheres negras, a série mostra toda produção acerca dos murais da cantora Alcione na Mangueira, da intelectual Lélia González em Santa Tereza, da atriz Zezé Motta no MUHCAB – Museu da História e da Cultura Afro-brasileira, da historiadora Beatriz Nascimento em Botafogo e da atriz Ruth de Souza no Theatro Municipal.






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