top of page

Um passeio pelo Rio de Machado de Assis

Atualizado: 2 de jul.

De Botafogo ao Engenho Novo, o Rampas faz uma viagem pelos cenários cariocas que inspiraram a obra do autor, traçando paralelos entre o passado literário e a cidade de hoje


Por Bernardo Cunha e Davi Guedes


Parede temática onde foi a casa de Machado, no Capitu Café, localizado no bairro de Cosme Velho.                                 Foto: Davi Guedes
Parede temática onde foi a casa de Machado, no Capitu Café, localizado no bairro de Cosme Velho. Foto: Davi Guedes

Ler Machado de Assis é caminhar pelo Rio de Janeiro do século XIX — uma cidade que, na obra do fundador da Academia Brasileira de Letras, vai além de um mero pano de fundo e ganha vida como personagem. De Botafogo ao Engenho Novo, passando pelas ruas do Centro, o Rampas percorre passagens emblemáticas da obra e da trajetória de Machado de Assis, apresentando os locais reais que serviram de cenário a seus romances. O resultado é um mapa interativo que entrelaça passado e presente, mostrando como esses espaços cariocas se transformaram desde a época do autor, que completaria 186 anos neste 21 de junho.


Nascido no Morro do Livramento, próximo à região portuária do Rio, Machado de Assis morou a vida inteira na cidade e passou os últimos anos no bairro que lhe rendeu o apelido de “Bruxo do Cosme Velho”. “O Rio de Janeiro era o mundo dele”, afirma o doutor em Literatura Comparada Gustavo Bernardo Krause. Em entrevista ao Rampas, o professor do Instituto de Letras da Uerj diz que o Rio tem várias características que favorecem os temas abordados pelo escritor. “É uma cidade de contrastes. Mar e montanha. Negros e brancos. Aristocracia e escravidão. Igreja Católica e religiões afro-brasileiras.” Não à toa, todos os seus romances se passam na cidade. Outros escritores também descreveram a capital fluminense, como José de Alencar e João do Rio, mas Machado foi além da ambientação: a cidade se tornou elemento narrativo, quase um personagem em suas histórias.


Casa onde nasceu Machado de Assis na Ladeira do Livramento.              Foto: Bernardo Cunha
Casa onde nasceu Machado de Assis na Ladeira do Livramento. Foto: Bernardo Cunha

Os romances e contos do autor são clássicos da literatura nacional e leituras obrigatórias no ensino básico no Brasil. Foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras e também seu primeiro presidente. Gustavo Bernardo resume a figura do autor em uma frase: “Machado é o ponto mais alto da nossa literatura.”



Rua do Riachuelo


“A casa era a da Rua de Mata-Cavalos, o mês novembro, o ano é que é um tanto remoto, mas eu não hei de trocar as datas à minha vida só para agradar às pessoas que não amam histórias velhas; o ano era de 1857”, escreve Machado de Assis em  Dom Casmurro (1899)

Nos arredores dos Arcos da Lapa, a atual Rua do Riachuelo, antiga Mata-Cavalos, atravessa parte importante da narrativa de Dom Casmurro. Ali, no Centro do Rio, viviam Bentinho e Capitu, protagonistas do romance, e é lá que ocorre o primeiro beijo do casal. No século XIX, a rua era tomada por palacetes, marca da elite que ali residia. Hoje, dá lugar a prédios residenciais e pequenos comércios.


Fotos da rua do Riachuelo em 1912, época em que Machado de Assis publicou Dom Casmurro, e dos dias atuais. Fotos: Reprodução/Instituto Moreira Salles (IMS) e Acervo pessoal: Bernardo Cunha/Rampas
Fotos da rua do Riachuelo em 1912, época em que Machado de Assis publicou Dom Casmurro, e dos dias atuais. Fotos: Reprodução/Instituto Moreira Salles (IMS) e Acervo pessoal: Bernardo Cunha/Rampas

Bairro do Engenho Novo


“Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei num trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu”, escreve Machado, na frase de abertura de seu romance mais famoso.


Em Dom Casmurro, o protagonista Bentinho se muda para  o bairro do Engenho Novo, onde  ganha o apelido que dá título à obra. Ao longo do romance, Bentinho menciona diversas vezes a localidade, destacando que a casa que construiu ali é uma réplica da residência onde passou a infância, na antiga Rua Mata-Cavalos – hoje Rua do Riachuelo. 


O nome do bairro remonta ao período colonial ,quando a região abrigava engenhos de açúcar. Ao longo do século XIX, época em que viveu Machado de Assis,  o Engenho Novo passou a ser ocupado gradualmente por causa do crescimento populacional no bairro vizinho de São Cristóvão, impulsionado pela instalação da família real na Quinta da Boa Vista. Outro fator determinante foi a construção da Estação Ferroviária do Engenho Novo em 1858, que integrava a Estrada de Ferro Dom Pedro II – rebatizada como Estrada de Ferro Central do Brasil em 1889. Segundo o historiador Marcus Dezemone, professor da Uerj, esse processo de urbanização consolidou o bairro como uma área predominantemente residencial, configurando-se como um subúrbio ainda nos tempos de Machado. “É um subúrbio mais próximo do centro da cidade, por isso que ele acaba aparecendo na obra do Machado”, diz o historiador.


Até  hoje o Engenho Novo mantém esse perfil. É ainda conhecido por ser uma área residencial ou de passagem. A principal via, Rua Barão do Bom Retiro, concentra comércios e conduz até a estação ferroviária, passando pela Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Ao redor, espalham-se ruas residenciais com casas que misturam estilos antigos e modernos — algumas preservadas, outras visivelmente deterioradas. 



Rua do Ouvidor


“No dia seguinte, estando na Rua do Ouvidor, à porta da tipografia do Plancher, vi assomar, à distância, uma mulher esplêndida. Era ela; só a reconheci a poucos passos, tão outra estava, a tal ponto a natureza e a arte lhe haviam dado o último apuro.”, diz um trecho de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881).


Uma das vias mais famosas do Centro, a Rua do Ouvidor  também é a  mais citada  na obra de Machado  No século XIX, era reduto da elite econômica e política, embora cercada por moradias populares. Segundo o professor Gustavo Bernardo, a Rua do Ouvidor era “um espaço de passagem, mas também onde se ouviam as fofocas”– ambiente ideal para encontros inusitados, recurso que o autor explora em sua ficção.


É lá que, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, o protagonista encontra-se com Virgília, com quem busca um romance que abriria caminho para sua ascensão política. Em outro momento da obra, Brás Cubas encontra nesta rua ao acaso Lobo Neves, personagem de peso na cena política da narrativa, e ali os dois tratam de assuntos burocráticos. Episódios como esses evidenciam como Machado transforma a rua em um espaço simbólico das relações sociais e de poder da época.


Atualmente, a Rua do Ouvidor é uma via estreita , com acesso a diversos prédios comerciais e marcada pela presença de bares, música ao vivo e eventos culturais. Sua antiga função como reduto das elites deu lugar a um ambiente mais popular e boêmio, frequentado majoritariamente pela classe média carioca.


A rua do Ouvidor em 1890, tal qual foi descrita nos romances de Machado de Assis, e registros da rua atualmente. Foto: Reprodução/IMS e Acervo Pessoal: Bernardo Cunha/Rampas
A rua do Ouvidor em 1890, tal qual foi descrita nos romances de Machado de Assis, e registros da rua atualmente. Foto: Reprodução/IMS e Acervo Pessoal: Bernardo Cunha/Rampas

Rua da Carioca


“E fizeste isto durante vinte e três anos, calado, obscuro, pontual, metido numa casinha da Rua do Piolho, sem enfadar o mundo com atual mediocridade, até que um dia deste o grande mergulho nas trevas, e ninguém te chorou, salvo um preto velho, — ninguém, nem eu, que te devo os rudimentos da escrita”, narra o autor carioca em outra passagem de Memórias Póstumas de Brás Cubas.


No livro, a Rua do Piolho foi onde Brás Cubas estudou. Desde 1848, ela é conhecida como Rua da Carioca, via tradicional que liga a Praça Tiradentes ao Largo da Carioca. Essa não foi sua primeira mudança de nome: originalmente chamada Rua do Egito, começou a ser urbanizada ainda no século XVIII, com a construção de sobrados coloniais..No início do século XX, durante a reforma promovida pelo então   prefeito Pereira Passos, a rua foi alargada e arborizada. Na década de 1980, foi tombada pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (INEPAC) devido à sua importância arquitetônica, cultural e histórica.


Ao longo dos anos, a Rua da Carioca passou por muitas transformações e se tornou um ponto forte de comércio especializado, como as lojas de instrumentos musicais e cervejarias tradicionais. Há também o Cine Íris, a sala de cinema em atividade mais antiga do Brasil - mas que hoje exibe apenas filmes pornográficos. A rua viveu um processo severo de esvaziamento que se intensificou com a pandemia de COVID-19 e hoje exibe muitas lojas fechadas, além de prédios com placas de venda ou de aluguel. A Prefeitura do Rio tenta revitalizar a área incentivando a volta das cervejarias ao local.



Bairros do Flamengo e de Botafogo


“Enquanto viveu, uma vez que estávamos tão próximos, tínhamos por assim dizer uma só casa- eu vivia na dele, ele na minha, e o pedaço de praia entre a Glória e o Flamengo era como um caminho de uso próprio e particular”, lê-se em um trecho de Quincas Borba (1892).


Os bairros do Flamengo e de Botafogo, na zona sul do Rio, são de grande relevância nos romances de Machado. Na época em que os romances foram ambientados, suas configurações eram muito diferentes das atuais. O aterramento do litoral do Flamengo, por exemplo, só ocorreu na década de 1960, alterando radicalmente a paisagem original descrita pelo autor.



O historiador Marcus Dezemone conta que no período ambientado na obra machadiana, a faixa litorânea que compreende os bairros do Catete, Flamengo e de Botafogo era como uma extensão do processo de urbanização do Centro e, por isso, reunia grupos sociais semelhantes, geralmente ligados à elite carioca. 


Na obra de Machado, esses bairros servem de cenário para passagens marcantes. Na orla do Flamengo, vale lembrar, bem diferente da atual, moravam Sofia e Cristiano, personagens centrais de Quincas Borba, cuja riqueza é um selo fundamental dentro da narrativa. 


“Não disse mais nada, ou eu não lhe ouvi o resto. Vesti-me, deixei recado a Capitu e corri ao Flamengo.  Em caminho, fui adivinhando a verdade. Escobar meteu-se a nadar, como usava fazer, arriscou-se um pouco mais fora que de costume, apesar do mar bravio, foi enrolado e morreu. As canoas que acudiram mal puderam trazer-lhe o cadáver”, escreve Machado em Dom Casmurro.


A praia do Flamengo é onde ocorre uma das principais cenas da trama: o afogamento de Escobar, amigo de Bentinho. O velório do personagem também ganha destaque, descrito como um grande evento que atrai uma multidão e ocupa toda a Praça da Glória, chegando à beira-mar. Com o aterro realizado na década de 1960, a orla do Flamengo perdeu o perfil residencial descrito por Machado e passou a abrigar grandes áreas de lazer, como parques, ciclovias e pistas de caminhada.


Em 2008, em homenagem ao centenário da morte do autor, uma via do bairro foi batizada como Rua Machado de Assis. Liga o Aterro do Flamengo à estação de metrô do Largo do Machado. Predominantemente residencial, ela abriga referências diretas à obra do escritor, como a Galeria Machado de Assis e o Edifício Quincas Borba.


 Homenagem ao autor na entrada da Rua Machado de Assis. Foto: Davi Guedes/Rampas
 Homenagem ao autor na entrada da Rua Machado de Assis. Foto: Davi Guedes/Rampas

“Rubião fitava a enseada, — eram oito horas da manhã. Quem o visse, com os polegares metidos no cordão do chambre, à janela de uma grande casa de Botafogo, cuidaria que ele admirava aquele pedaço de água quieta; mas, em verdade, vos digo que pensava em outra coisa”, consta em outra passagem do livro Quincas Borba.


É diante da enseada de Botafogo que se inicia o romance. Recém-enriquecido por uma herança, o protagonista Rubião contempla o mar enquanto vislumbra a nova vida que o aguarda. A escolha de Machado por esse cenário não é aleatória: o bairro simboliza o pertencimento à elite carioca, e serve como pano de fundo para as ambições do personagem.


Hoje, a paisagem é bem distinta da retratada na literatura machadiana. A região da enseada de Botafogo se transformou em um importante espaço de lazer e circulação. Curiosamente, tanto na época de Machado quanto até pouco tempo atrás, a Praia de Botafogo não era usada para banho. “O hábito de tomar banho de mar não era tão difundido durante todo o século XIX, começou a ser uma coisa do século XX”, afirma Dezemone. Ao longo do século XX, no entanto, a Praia de Botafogo passou por um processo de degradação ambiental, que a deixou imprópria para banho. A partir de 2021, com melhorias no sistema de saneamento e despoluição da Baía de Guanabara, o Instituto Estadual do Ambiente (Inea) voltou a declarar a balneabilidade da praia em determinados períodos. Desde então, a orla tem sido gradualmente reocupada por banhistas, retomando seu lugar como destino de lazer para cariocas e turistas. 



Memória de Machado resiste no Cosme Velho 


Na esquina da Rua Cosme Velho com a Marechal Píres Ferreira está um ponto de interesse para qualquer amante de literatura: a residência onde Machado de Assis passou seus últimos anos de vida. Atualmente, o imóvel dá lugar ao Capitu Café, um restaurante temático que celebra a obra do autor, desde o nome até sua decoração estilizada com referências literárias.



Alberto Siqueira, assistente administrativo do local, conta que o estabelecimento vai além do funcionamento comercial, atuando como um espaço cultural em homenagem ao autor.  “Machado de Assis é um escritor genial que deixou tantas obras para a gente, não só na literatura, mas também peças teatrais. É fundamental preservar sua memória”, diz o funcionário do Capitu Café. O restaurante conta com uma série de exemplares de títulos do autor, cujo intuito é fazê-los circular entre os clientes. O local atrai visitantes do Brasil e do exterior e se consolidou como ponto turístico no Cosme Velho.


Explore o Rio de Machado de Assis neste mapa interativo



Comentários


O site Rampas é um projeto criado por alunos de jornalismo da Uerj, sob supervisão da professora Fernanda da Escóssia.

©2025 por Rampas.

bottom of page