Nova biblioteca fortalece cultura negra na Vila Kennedy
- Raquel de Sousa
- 30 de jun.
- 3 min de leitura
Atualizado: 2 de jul.
Criada por moradoras do bairro, a Biblioteca Esperança Garcia aposta na conexão entre literatura afrocentrada e cultura hip-hop como ferramenta de autoestima e transformação social
por Raquel de Sousa
No coração da Vila Kennedy, bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro, foi inaugurada a Biblioteca Esperança Garcia, um espaço cultural afrocentrado criado pelo Modu (Movimento Desabafo Urbano), ONG que promove atividades culturais na região. A iniciativa é financiada graças a um edital da Prefeitura do Rio dentro da programação do Rio Capital Mundial do Livro 2025, título concedido pela Unesco em reconhecimento às políticas públicas de incentivo à leitura desenvolvidas no município.

Mais do que prateleiras e livros, a Biblioteca Esperança Garcia representa um movimento de afirmação de identidade, valorização da história negra e promoção de um novo imaginário para crianças e jovens das favelas do entorno. Seu nome homenageia Esperança Garcia, mulher negra, escravizada, considerada a primeira advogada do Brasil. Em 1770, ela escreveu uma carta ao governador do Piauí denunciando abusos e reivindicando direitos – ação que, séculos depois, seria reconhecida como um marco da luta por direitos humanos. Inspirada nesse legado, a biblioteca nasce da urgência de reivindicar dignidade, voz e espaço.
A ideia do projeto surgiu quando as advogadas, moradoras da Vila Kennedy e integrantes da gestão do Modu Vanessa Amorim e Rhaviny Mariano conheceram uma livraria especializada em literatura negra na Expo Favela Innovation, feira de negócios que ocorre anualmente em todo o Brasil. Um dos livros, uma edição do Pequeno Polegar com um menino negro na capa, impactou profundamente a dupla e as fez reconhecer a urgência dessa representatividade para a infância da favela. “Nunca tinha lido um livro com uma criança negra na capa. Precisava mudar isso”, diz Vanessa, que inscreveu o projeto da biblioteca no edital municipal. “O que mais chamou atenção dos avaliadores foi justamente a conexão da biblioteca com o hip-hop. Nenhum outro projeto apresentava essa interligação entre cultura urbana e literatura”, explica. Ela também foi responsável pela curadoria do acervo, priorizando editoras afrocentradas e excluindo obras com conteúdos racistas ou estereotipados.

Inaugurada no fim de abril, a biblioteca funciona dentro da sede do Modu, na Rua Lomé, nº 55, em frente à Praça do Barrão. O acervo conta com cerca de 500 obras, entre títulos infantis, literatura afro-brasileira e publicações sobre cultura hip-hop. No entanto, o desafio da formação de leitores ainda é grande. “Os livros sobre hip-hop chamaram bastante atenção, os garotos gostaram, mas estamos com baixa frequência. Esse acervo de 500 obras é só o começo. Temos dificuldades financeiras, mas já demos o pontapé inicial”, afirma a advogada e idealizadora do espaço.
Hip-hop, educação e cultura como ferramenta de transformação social
A Biblioteca Esperança Garcia é a extensão natural do trabalho realizado pelo Modu há mais de uma década na Vila Kennedy. Presidido pelo ativista Alexandre Da Vila e formalizada em 2014, a ONG começou suas atividades de forma itinerante, ocupando ruas, praças, centros comunitários e associações de moradores com atividades culturais. Sem sede própria por muitos anos, o Modu foi resistência ambulante promovendo oficinas de rima, grafite, teatro, produção audiovisual e musical, DJ, basquete e debates sociais, sempre com foco na cultura hip-hop.

A sede própria, conquistada em 2023, ampliou as possibilidades. “Cultura não é só lazer. É uma ferramenta de conhecimento, de identidade, de transformação. É o que nos move”, afirma Rhaviny. A ONG também mantém ligação direta com o selo de trap Distrito 23, responsável por lançar artistas como os rappers Chefin e Oruam. Essa integração entre arte urbana, literatura, música e formação crítica é o que torna o Modu um polo de potência dentro da favela. “O hip-hop sempre foi denúncia, sempre foi ponte. E agora também é leitura. Se o menino gosta de rimar, por que ele não pode escrever também? Se ele se vê numa letra, ele também pode se ver num livro”, defende a advogada.
Na contramão da exclusão histórica, a Vila Kennedy tenta escrever novos capítulos de sua história com projetos como o Modu e a Biblioteca Esperança Garcia. Vanessa reforça o impacto social da iniciativas: “Quero que nossas crianças tenham acesso à beleza de sua própria história desde cedo. Isso é autoestima. Isso é poder.”
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